O frio aperta na manhã cristalina. Ou talvez seja o calor que espeta as suas garras impediosas logo às oito da manhã.
Das portas dos prédios saem formiguinhas apressadas, em direcção às creches, às escolas ou simplesmente aos empregos.
A maioria acumula-se nas paragens, enquanto outros se dirigem aos respectivos carros.
Parada, à espera daquele monstro gigante da Carris que me há-de conduzir à minhoca gigante do Metro, olho em volta na paragem. Não vejo meio termo. Passamos da avozinha de muletas para o jovem de mochila às costas e ar ensonado. Eu sou das poucas pessoas da minha idade que vai de autocarro. E mesmo assim, o autocarro vem cheio. Dou passagem à avozinha de muletas, o jovem de mochila dá-me passagem a mim. Os lugares reservados a deficientes físicos estão ocupados por jovens com mochilas ou gente demasiado casmurra para ver que ali não pertence. Como fingem adormecer, seguro no braço da avozinha e pergunto em alto e bom som:
- Não se importa de dar lugar a esta senhora?
Por vezes levantam-se, outras ainda me olham com insolência. E a estes reitero:
- Eu sei que esses lugares são reservados aos deficientes, mas esta senhora não pode ir de pé e uma deficiência mental sempre se equilibra melhor numa curva do que uma muleta.
A senhora senta-se agradecida e com ar cansado, mas eu já fiz um inimigo. Ainda são só oito da manhã.
Chego ao metro e vou ensanduichada até ao meu destino. Quando lá chego, tenho de apanhar outro autocarro. Vejo uma paragem dupla, cheia de gente, e olho para o mostrador luminoso, que contra o que é costume até está a trabalhar. Diz que já só faltam dois minutos para o próximo autocarro, mas eu não acredito, até porque já ouço dizer nas paragens:
- Está assim há dez minutos. E nunca mais vem.
E quando efectivamente vem, está a rebentar pelas costuras. Porque retiraram autocarros a todas as carreiras, porque fizeram greve às horas extra, porque se estão pura e simplesmente nas tintas para quem compra passe. Só consigo entrar por trás, e isto se o motorista for simpático e compreensivo e abrir as portas de trás. Alguns até chegam o autocarro à frente para que a porta de trás fique acessível a todos. Tão fofos!
Quando chego ao meu destino final, o autocarro parece vomitar gente e de ir à pinha, passa a vazio, só com um formiguita perdida ou outra lá dentro. E diz uma senhora com ar cansado:
- Quando as aulas acabarem, isto muda tudo e passamos a ir mais à vontade.
O que essa senhora não entende é que assim que as aulas acabarem, a Carris passa a horário de Verão no próprio dia, pois parece julgar que apenas os estudantes compram passe. E vamos continuar a andar apinhados no autocarro porque não vão ter consideração suficiente para reforçar as carreiras à hora de ponta.
E falam de crise tão livremente como um mercador debate preços na feira. Falam de crise e cortam nos autocarros, mas andam em brutos carros, e temos um Director de uma DGV a ser apanhado a 220 km/h numa ponte, apenas porque o carro não foi feito para andar devagar. Temos fundações, que ninguém percebe para que servem, mas que existem a sugar o dinheiro ao Estado como um bebé suga o leite.
Mas que importa tudo isto, desde que caiba mais uma mosca dentro do autocarro? Enquanto houver espaço no autocarro para se enfiar mais uma pessoa nem que seja à força de abre latas, continua-se a cortar nos autocarros e a aumentar o preço dos passes.
O que interessa se a velhinha de muletas vai em pé?
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