Lá diz o povo que não há pior cego do que aquele que não quer ver. E lá dizia Almeida Garret que a sabedoria do povo era a sabedoria de Deus.
Não sei se Almeida Garret tem razão, mas o povo tem de certeza.
Conheço várias pessoas que têm uma língua de tal forma viperina que sempre achei que no dia em que a mordessem acabariam envenenados pela peçonha. São maldizentes em relação a tudo, mas têm olhos particularmente afinados para os filhos dos outros. Ou porque comem de boca aberta, ou porque respondem torto, ou porque vestem as calças ao fundo do rabo...
Eu sei lá.
Não é que eu pessoalmente não repare no mesmo que essas pessoas. Provavelmente até reparo. Porque afinal é fácil olhar para o lado. O complicado é olhar para dentro de casa.
Sou uma pessoa crítica por natureza. Também sou espontânea, o que torna os meus pensamentos públicos mais vezes do que é recomendável para “se viver bem em sociedade” – oh, as vezes que ouvi esta. E depois olhava em volta e parecia que só via comadres a cortarem na casaca uns dos outros, só escondendo do vizinho o mal que dele diz pelas costas. Já eu, ficam logo todos a saber o que penso e o que acho, porque ao menos digo-o em alto e bom som. Não crio dúvidas, não dou lugar a “suponhamos” mas também não me grangeia muitas “amizades”. Ao que vale é que prezo mais a qualidade que a quantidade e portanto tive a grande sorte de me poder rodear de amigos que pensam e agem como eu. Poucos, mas bons.
Adiante que já me estou a dispersar.
Estava eu a dizer que o pior cego é aquele que não quer ver. O meu filho vai fazer três anos. Mas para mim continua a ser bebé. No outro dia dei comigo a analisar-lhe as feições, que de bebés já têm muito pouco, que são cada vez mais de rapazinho a crescer, e penso: “Meu Deus, para onde foi o meu bebé? Este rapaz está enorme! Ainda ontem nasceu!” Suponho que para as mães os filhos são sempre bebés e nesse aspecto não sou diferente. Mas reconheço que o meu bebé está com quase três anos, que cresceu, que é ferozmente independente e que só quer mimos quando ele próprio pede – caso contrário, levamos um safanão. Continua a ser o meu bebé, mas já diz tudo e tem muita vivacidade.
No outro dia estava a falar com uma amiga sobre uma rapariga que existe em comum na nossa vida e a quem amamos muito. Ela via-a ainda como adolescente. Mas com a idade dela, dificilmente se pode falar em adolescente. Já ultrapassou a barreira dos 20 (embora não há muito, é certo), tem direito a voto e carta de condução. Talvez por eu ter menos convívio com a rapariga em questão, vejo-a com outros olhos. Amo-a muito – e isso é independente de partilharmos parte do ADN – mas reconheço que ela se transformou numa pessoa que eu não reconheço. É manipuladora, preguiçosa, egocêntrica. E a manipuladora deixa-se manipular com facilidade pelo fofo do namorado que, sendo um rapaz da idade dela, não só não faz nenhum, como não o quer fazer. Não é tão mais giro sair à noite, comer e beber às custas da namorada, com o conhecimento e a benção dos paizinhos da dita?
Talvez seja por ser de outras épocas. Separa-me quase uma década desta moça mas se fosse um milénio, as diferenças não seriam tão sentidas. Esta rapariga já teve um episódio com gravidade relativa de anorexia, mas os pais preferem acreditar que foi um episódio esporádico e que a criancinha está bem e recomenda-se. Atiram areia para os olhos dos outros – ou pelo menos tentam – e acreditam que os outros se deixam enganar.
São capazes de detectar uma mancha comportamental nos filhos dos outros a 150 m de distância; mas não vêem o que têm em casa. E quando vem alguém de fora, e chama a atenção, mesmo que seja com um comentário aparentemente inócuo, preferem virar-se contra essa pessoa e atirar pedras.
São cegos? Não têm discernimento? Será possível que achem que os outros são cegos ou que se ignorarem o problema ele desaparece? Porque, meus amigos, o problema não é só as drogas ou o álcool; as más companhias e o excesso de liberdade também prejudicam. Quando nos untam as mãos com massas suplementares quando estalamos os dedos, é normal que não se queira fazer nada da vida.
Eu nunca gostei de me sentir um peso para ninguém; estudei e trabalhei ao mesmo tempo e dessa forma tirei uma licenciatura e uma pós-graduação. Porque me ensinaram, de pequena, o valor do trabalho.
Mas aquela rapariga, e outras como ela, parece que só têm em vista aquilo a que Freud chamava o Princípio do Prazer. O amanhã não existe, e cultura geral é um palavrão que não lhes assiste. Giro é pinocar com o namorado, extorquir dinheiro à mãe e passear com o carro do pai, que tão atenciosamente ele atestou primeiro.
Que responsabilidades tens tu na vida, minha querida? Acharás tu que eu te amo menos por te dizer as verdades? Disseste-me uma vez frontalmente que não querias saber se eu gostava dele ou não porque a ti é que te caberia gostar e farias o que te desse na real gana. Pois é, querida, dizes isso porque tens quem te sustente o estilo de vida. Porque no dia em que os ceguetas fecharem os olhos e a torneira do dinheiro secar, tu ficas a olhar para as mãos e com um chulo do teu lado que não gosta de trabalhar porque dormir de dia e abanar o capacete à noite é que é giro.
Mas uma coisa eu sei: tens de ser tu a ultrapassar essa fronteira. Aprendi à minha custa que o mais que podemos fazer é indicar o caminho, cabe ao próximo decidir se o segue ou não.
Portanto, vai em frente. E reza para que tenhas alguém que te ampare quando partires a cabeça nessa parede onde tanto insistes em esbarrar de frente.