sábado, 1 de outubro de 2011

Uma Última Partida de Dominó



Em miúda, jogava muito ao dominó. Ou o meu avô ou a minha avó sentavam-se comigo e estavam horas a jogar. Faziam fintas, negaças e muitas vezes deixavam uma miúda abelhuda ganhar apenas para ver o seu sorriso desdentado de quem já está a perder a dentição de leite.

O meu avô faleceu há muito. E quando o coração desistiu de bater, ele já não reconhecia a miúda desdentada na adolescente de sorriso triste. Ele já não reconhecia a neta. Ele já não reconhecia ninguém.

Ficou a minha avó.

Excelente bordadeira, não havia segredo do croché que não conhecesse. Fazia um naperon mais rapidamente do que eu conseguia desenrolar os olhos. Parecia que mal pestanejava já o naperon estava feito.

Comprei meadas e meadas de linhas para ela fazer os seus naperons. Tenho tantos feitos por ela que não tenho mesas que cheguem.

Tinha uma astúcia serena a jogar, uma calma e um sorriso meigo. Era a avózinha que todos queriam. Cúmplice e bem disposta.

Mas a demência também a apanhou. Já não há astúcia serena a jogar dominó. Tenta contar as pedras e engana-se frequentemente porque embora saiba as regras, já não as consegue aplicar. Perdeu muitas coisas e a agulha do croché foi a primeira. Já não há naperons. Às vezes já não há reconhecimento.

Fala do bisneto como se tivesse estado na pele da neta. O que eu fiz, na cabeça dela, fez ele. O que eu disse, na cabeça dela, fez ele.

E alturas há em que na cabeça dela, ele já não existe e eu sou bebé de berço.

Hoje jogámos dominó. E ainda que ela ainda não o saiba, foi a última porque amanhã a vida dela vai mudar. Já não pode estar sozinha, uma vez que já não consegue tratar da higiene básica.

Já não há astúcia serena. Já não há astúcia. Já não há croché. Já não há reconhecimento.

Tantos já não hás...!

Ficou a desorientação, o olhar por vezes vazio, o sorriso triste.

Ficou o piloto automático, mas a minha avó já cá não está. Fisicamente, está alguém que usa o corpo dela e fala com a voz dela, mas já não é a avó que eu tinha.

Gostava, por uma hora que fosse, reviver aquela criança desdentada e de sorriso franco e a avó com a astúcia serena e o avô brincalhão.

O presente é uma dor constante. Cada jogada daquela última partida de dominó uma facada no coração.

Eu quero a minha avó.

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