quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Chafariz

É engraçado como damos certas coisas como garantidas e nem nos apercebemos da sorte que temos em tê-las diariamente. São coisas básicas: luz, água, gás... pode não parecer, mas foi uma grande invenção. Só o facto de não ter de lavar a roupa no tanque com água que fui ao chafariz buscar já é bom. Apetecer-me um copo de água e ter de verificar o nivel de água no balde primeiro também.

Porque é que digo isto?



Ontem rebentou um cano no meu prédio que afectou todos os andares. A EPAL disse logo que o problema não era deles, para se chamar os bombeiros para cortarem a água e depois chamar o canalizador. Eram oito da noite, já não havia muito tempo para se chamar canalizador algum. Mas lá chamaram os bombeiros para cortar a água, tendo tido o cuidado de avisar o prédio em peso para encherem uns quantos baldes antes que a água fosse cortada.

Como todos, foi o que fiz. Enchi baldes, jericans de água e ainda consegui tomar banho (outro, porque já tinha apanhado uma bela molha nesse dia. Quem diria, por uma vez a metereologia acertou, choveu mesmo!). Mas quando fui para dar banho ao garoto, já a água estava cortada.

É claro que é nestas alturas que parece que tudo acontece: o garoto quis água, bebeu engarrafada. A loiça ficou para lavar no dia seguinte, a máquina da loiça estava cheia e a pedir uma lavagem, o cesto da roupa suja a abarrotar, e o garoto com uma sede daquelas, parecia que tinha comido bacalhau e do salgado! E dar banho ao garoto? Foi de alguidar, pois claro! Ele não gostou muito, mas enfim, logo já toma banho normalmente. Isto se o cano estiver arranjado. Se não estiver é que vai ser mais complicado...!

Pensar eu que nos tempos da minha bisavó era tudo assim, no tanque, com água do chafariz, ou em alguidares. E sobrevivia-se. Não se tomava era tantos banhos como agora, isso é verdade. Mas a loiça era lavada, e a roupa também, nem que fosse em tanques comunitários. Se quando a minha bisavó era nova lhe dissessem que daí a uns anos a água ia ser canalizada, ela provavelmente ria-se. E depois ia ao chafariz.

Já a mim, se me dizem que logo tenho de recorrer aos alguidares outra vez... bem, não me vou rir com toda a certeza.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Este só pode estar a gozar



Acho uma piada imensa aos palhaços que pensam que os subalternos são robots. Que são tão frios emocionalmente, tão desprovidos de sentimentos, quanto eles próprios. Lá porque têm um bloco de gelo no lugar do coração, lá porque são geneticamente incapazes de ver para além do próprio umbigo, devem pensar que os outros funcionam no mesmo comprimento de onda. Mas aqueles que vivem no mundo real, que têm sentimentos, que têm família, estão cansados e fartos de ser explorados. Acho que este palhaço em específico ainda não percebeu que não é armado em besta que leva a dele avante. Porque quanto mais pressiona, menos leva. Mas está com sérias dificuldades em entendê-lo.

Por mim, e porque não tenho propriamente picos na língua ou problemas em afirmar-me, vou fazê-lo entender. Se não percebe a bem, percebe a mal. O trabalho acumula? Azar, desemerde-se. Ou começa a ver a sua própria equipa como sendo composta por pessoas humanas ou prepara-se para ser soterrado debaixo das pilhas de trabalho.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Artigo de Pedro Afonso - Médico psiquiatra

Li este artigo, que foi publicado no Público, e não posso deixar de partilhar.




Transcrição do artigo do médico psiquiatra Pedro Afonso, publicado no
Público


Alguns dedicam-se obsessivamente aos números e às estatísticas
esquecendo que a sociedade é feita de pessoas.

Recentemente, ficámos a saber, através do primeiro estudo
epidemiológico nacional de Saúde Mental, que Portugal é o país da
Europa com a maior prevalência de doenças mentais na população. No
último ano, um em cada cinco portugueses sofreu de uma doença
psiquiátrica (23%) e quase metade (43%) já teve uma destas
perturbações durante a vida.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque assisto com
impotência a uma sociedade perturbada e doente em que violência,
urdida nos jogos e na televisão, faz parte da ração diária das
crianças e adolescentes. Neste redil de insanidade, vejo jovens
infantilizados incapazes de construírem um projecto de vida, escravos
dos seus insaciáveis desejos e adulados por pais que satisfazem todos
os seus caprichos, expiando uma culpa muitas vezes imaginária. Na
escola, estes jovens adquiriram um estatuto de semideus, pois todos
terão de fazer um esforço sobrenatural para lhes imprimirem a vontade
de adquirir conhecimentos, ainda que estes não o desejem. É natural
que assim seja, dado que a actual sociedade os inebria de direitos,
criando-lhes a ilusão absurda de que podem ser mestres de si próprios.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque, nos últimos quinze
anos, o divórcio quintuplicou, alcançando 60 divórcios por cada 100
casamentos (dados de 2008). As crises conjugais são também um reflexo
das crises sociais. Se não houver vínculos estáveis entre seres
humanos não existe uma sociedade forte, capaz de criar empresas
sólidas e fomentar a prosperidade. Enquanto o legislador se entretém
maquinalmente a produzir leis que entronizam o divórcio sem culpa,
deparo-me com mulheres compungidas, reféns do estado de alma dos
ex-cônjuges para lhes garantirem o pagamento da miserável pensão de
alimentos.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque se torna cada vez
mais difícil, para quem tem filhos, conciliar o trabalho e a família.
Nas empresas, os directores insanos consideram que a presença
prolongada no trabalho é sinónimo de maior compromisso e
produtividade. Portanto é fácil perceber que, para quem perde cerca de
três horas nas deslocações diárias entre o trabalho, a escola e a
casa, seja difícil ter tempo para os filhos. Recordo o rosto de uma
mãe marejado de lágrimas e com o coração dilacerado por andar tão
cansada que quase se tornou impossível brincar com o seu filho de três
anos.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque a taxa de
desemprego em Portugal afecta mais de meio milhão de cidadãos. Tenho
presenciado muitos casos de homens e mulheres que, humilhados pela
falta de trabalho, se sentem rendidos e impotentes perante a maldição
da pobreza. Observo as suas mãos, calejadas pelo trabalho manual,
tornadas inúteis, segurando um papel encardido da Segurança Social.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque é difícil aceitar
que alguém sobreviva dignamente com pouco mais de 600 euros por mês,
enquanto outros, sem mérito e trabalho, se dedicam impunemente à
actividade da pilhagem do erário público.
Fito com assombro e
complacência os olhos de revolta daqueles que estão cansados de
escutar repetidamente que é necessário fazer mais sacrifícios quando
já há muito foram dizimados pela praga da miséria.

Finalmente, interessa-me a saúde mental de alguns portugueses com
responsabilidades governativas porque se dedicam obsessivamente aos
números e às estatísticas esquecendo que a sociedade é feita de
pessoas. Entretanto, com a sua displicência e inépcia, construíram um
mecanismo oleado que vai inexoravelmente triturando as mentes sãs de
um povo, criando condições sociais que favorecem uma decadência
neuronal colectiva, multiplicando, deste modo, as doenças mentais.

E hesito em prescrever antidepressivos e ansiolíticos a quem tem o
estômago vazio e a cabeça cheia de promessas de uma justiça que se
há-de concretizar; e luto contra o demónio do desespero, mas sinto uma
inquietação culposa diante destes rostos que me visitam diariamente.

Pedro Afonso
Médico psiquiatra

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Segunda-feira



A segunda-feira é sempre lixada. Quer porque seja o primeiro dia de trabalho a seguir a um ou dois dias de descanso, quer seja porque o despertador nos obriga a madrugar – malandro! – a segunda-feira tem muito má fama. A pessoa está em baixo, há sempre alguém que diz: “Tás com cara de segunda-feira!”, ou então o sempre eterno “a segunda-feira devia ser dia de descanso”.

Também me arrastei para fora da cama com muita dificuldade, confesso. E como todas as segundas-feiras, lembro-me de ter pensado: “O quê, já?? Ainda agora me deitei!”

Fiz as minhas abluções matinais e depois pratiquei um desporto olímpico não reconhecido: tirar o garoto da cama depois de um fim de semana de farróbadó. Vinte minutos depois de ter iniciado a modalidade, lá consegui tirá-lo, vesti-lo e lavá-lo antes que ele tivesse tempo de reclamar. A reclamação veio depois: “Não tenho fome, não quero comer, não quero escolinha”.

Ouvidos moucos e ala para a paragem do autocarro. Aí chegados, descubro que os lugares reservados às grávidas estavam ocupados mas como era pela terceira idade, nem olhei duas vezes. A mim pesa a barriga, a eles pesa a idade. O puto entretanto continuava: “Posso ir contigo ganhar tostão, mãe? Não quero ir para a escolinha!”

Ainda não tem quatro anos e já me diz que não gosta da escola. Estou tramada com o rapaz!

Chego à creche e descubro-a fechada porque a professora dele se atrasou. Tudo bem, todos temos direito a uma segunda-feira lixada, até a professora. Eu é que começo a olhar para o relógio.

Deixo-o na creche e vou para o metro que, como de costume, vem a abarrotar. E pior que isso, no lugar reservado às grávidas estão dois jovens cheios de malas que nem português falam. Por sorte, o sinal da gravidez é inconfundível. Um levanta-se para que eu me sente, não sem me tirar medidas e ver se a minha barriga é maior que a dele. A única diferença é que a minha não é de cerveja.

Venho no metro, semi-atenta às conversas em meu redor:

“- Nem quis acreditar quando aquela porcaria tocou!”
“- Ainda estou cansada do fim de semana!”
“- Vi-me grega para sair da cama!”

Conversas elucidativas. Dúvidas houvesse sobre o dia da semana em que estou, as conversas esclareciam-me.

Chego ao trabalho, olho em volta e está tudo com ar sonolento, rabugento e de expressão predominantemente fechada. Os bons-dias traduzem-se em: “que ninguém me diga nada!”

Resumindo, o dia ainda ia no inicio e já estava tudo a olhar para o relógio, a ver quando acabava.  Pus-me a pensar, temos cinco dias na semana em que o despertador nos arranca às profundezas do sono, e de uma forma bastante ingrata. A rotina é igual todos dias, mas é a segunda-feira que paga as favas. Porque será??

sábado, 15 de setembro de 2012

Para o R.



Já passaram duas semanas desde que foste embora. Os restos do jantar vão para o lixo, mas ainda tenho o hábito de pensar "tenho de lhos dar". E depois recordo-me que já cá não estás, e que o que tenho na mão tem como destino o lixo. Costumava dizer na brincadeira que eras a minha "Brigada de Limpeza Canina", pois quando caía alguma coisa aí ias tu ver se era saborosa. Lembras-te quando deixei as espetadas temperadas e tu rapinaste uma? Lembras-te do pacote da mortandela que comeste de empreitada? E o pedaço de torresmo, quase tão grande como tu, que arrastaste para a cozinha, esperando que eu não desse conta?

Ou daquela vez que te atiraste àquele cretino imbecil apenas porque pressentiste que eu o detestava? Nunca pensei que conseguisses reagir assim aos meus sentimentos, estávamos em sintonia.

Foste sempre incapaz de odiar. Eras meigo mesmo quando não conhecias. Crianças, adultos ou idosos, todos conheciam o teu lado meigo. Foi aquela a única vez que te vi zangado. 

Sei que estás melhor agora, que estás permanentemente acompanhado, que já não te sentes só, mas continua a doer a ausência, a sensação que havia algo que podia ter feito e não fiz, algo que estava fora do meu alcance.

Continuam a perguntar por ti, continuo a encolher-me na cama, como se ainda dormisses a meus pés. Quando entro em casa ainda espero encontrar-te, vejo outro igual a ti na rua e penso em ti. Fazes-me tanta falta, a tua companhia silenciosa, como só tu sabias fazer.

Sei que estás melhor agora e só isso é que me permite combater a saudade que sinto.

Ainda bem que estás melhor agora. Acompanhado o dia todo, com crianças para brincar... Sei que estás melhor, meu querido R.


(Imagem tirada do Google)