Em 2007 tive um pequeno acidente que me atirou para uma baixa de dois meses. Ainda não tinha o meu piolhito, nem ele era ainda imaginado ou sonhado.
A meu lado, sempre incansável, estava a minha avó. A minha sereníssima avó, que mantinha um ar estóico mesmo quando tudo à sua volta parecia desmoronar.
Apesar do acidente e de precisar de muletas para me deslocar, apesar da besta de médico que me calhou na rifa, tive o seu apoio incondicional. E hoje, como então, admiro-a e acarinho cada dia daqueles dois meses.
De manhã - e habituada a acordar cedo - eu costumava ver com ela um filme ou ler um livro ou uma revista. Tinha uma forma muito sua de ver o mundo, habituara-se a interpretá-lo conforme o que lia nos lábios porque era surda parcialmente desde os dez anos. A surdez avançou com a idade, mas a mente continuou arguta. Ninguém a enganava, porque estava sempre atenta.
À tarde, enquanto eu trabalhava nos meus quadros de ponto cruz, ela fazia o seu croché. Sempre incansável a fazer um naperon, uma colcha, o que quer que lhe tivessem encomendado. Enquanto tivéssemos luz, trabalhávamos ambas. A meio da tarde, levantava-se para nos fazer um chá.
Depois, quando comecei a andar só com uma muleta, resolvi um dia ir com ela a Alvalade, passear à Avenida da Igreja. O que ela adorava aquela avenida! Dizia que respirar ali era respirar Lisboa! Era alfacinha de gema, de coração.
Corremos as lojas todas, comprámos papel de embrulho, fita-cola, prendas, tanta coisa! Porque então, como agora, estávamos no Natal. E os olhos dela sorriam, de contentamento. Nunca se queixou de cansaço, como seria natural numa mulher da idade dela.
Só a vi chorar duas vezes na vida, uma de tristeza profunda por ter perdido a irmã - de idade muito avançada - e outra de alegria, quando soube que ia ser bisavó.
Amou o meu filho desde o primeiro momento, como amou todas as crianças. Amou porque estava na sua natureza amar.
E agora, esta senhora tão especial, este doce de avó, tem a mente fechada para mim. A demência avançou e ela já não reconhece praticamente ninguém. E nesta altura custa-me mais do que em qualquer outra porque a recordação daquele Natal de 2007 é forte e vívida e não consigo olhar para o quadro que bordei no dois meses que estive de baixa sem me lembrar dela e do que aqui passámos.
Aquele olhar vívido e inteligente estava aquoso e baralhado da última vez que a vi. Não sei o que vou encontrar quando a rever, mas sei que tenho de a ver porque ainda há uma coisa que tenho de lhe dizer.
Disse-lho várias vezes, por gestos, por cuidados, por carinhos, mas nunca lho disse frontalmente. Nunca lhe disse o quanto a amo. E sinto que é importante dizer-lho. Mesmo que ela já não me reconheça. Mesmo que me doa até o mais profundo da alma.
Porque ela é a minha avó.